Percursos

From Brazil to the Termas Romanas de Braga

O meu avô paterno nasceu em Priscos, na freguesia de Braga que deu à luz o famoso Pudim Abade de Priscos, saboroso como poucos e doce como nenhum. Emigrou para o Brasil na década de 1960 para trabalhar em S. Paulo como operário de construção civil. Alguns anos mais tarde montou a sua própria empresa e não tardou a fazer fortuna.

 

O avô teve sempre um carinho especial por mim. Quando eu nasci, fez questão de apadrinhar o meu batismo e de escolher o meu nome. Por isso me chamo Neusa, que ele dizia ter os significados de “sábia” e “nadadora”, como se o meu nome fosse um presságio de que a família atravessaria um dia o atlântico (“nem que fosse a nado”, como o avô rematava com humor) para regressar ao verde minhoto que ele fora obrigado a deixar por razões económicas.

 

Sou doutorada em arqueologia pela universidade de S. Paulo, onde leciono Introdução à História e Arqueologia de Roma. Na visita que fiz a Braga, além de ter prestado uma homenagem póstuma ao meu avô, aproveitei para observar o património histórico e arqueológico da cidade.

 

O relato que deixo neste guia descreve o primeiro percurso que fiz pelo centro de Braga, desde o Museu Nogueira da Silva até às Termas Romanas. Percorri-o como quem navega em águas calmas, sem a preocupação de escolher os lugares aonde fui aportando, numa experiência apurada pelo sentimento de me saber mergulhada nas raízes mais profundas da minha genealogia. Acompanhem-me, pois, nessa viagem.

Neusa

 


1. MUSEU NOGUEIRA DA SILVA

 

O táxi deixou-me na Avenida Central, em frente do Museu Nogueira da Silva. Interessava-me conhecer as peças de ourivesaria do acervo, porque o ouro, a prata e as pedras preciosas, quando trabalhados por mãos alquímicas de artesãos qualificados, exercem sobre mim um fascínio inexplicável. Além da ourivesaria, o museu é rico em pintura, escultura, mobiliário e cerâmica. Admirei sobremaneira as faianças portuguesas dos séculos XV a XVII. Os jardins são de visita obrigatória. Logo à entrada, demorei-me a apreciar as esculturas e os painéis de azulejos de Jorge Barradas, um notável modernista português que, além de ceramista, foi pintor, ilustrador e caricaturista. 

 

 


2. joias n'avenida 

 

Ainda pela Avenida Central, parei em frente da Joias N’Avenida, em cuja montra se distribuíam peças de fina ourivesaria em ouro e prata. Mas o que me chamou a atenção foi o interior da loja, onde se expunham bolsas de senhora com design moderno e elevada qualidade de materiais e acabamentos. Comprei uma bolsa de couro a tiracolo que condizia com a roupa que levava vestida, de tons claros e desportivos. Afinal de contas, pensei, precisaria de guardar catálogos, mapas, pequenas compras e outros objetos que colecionaria durante o percurso que iria fazer nessa manhã. Meti a carteira de mão e o smartphone na bolsa que acabara de comprar, e coloquei-a a tiracolo para ficar livre de movimentos.


3. sapataria Gomes Carneiro

 

Em frente à Igreja dos Terceiros, cortei à esquerda pela Rua do Castelo. Entrei na Sapataria Carneiro para experimentar umas sapatilhas que vira expostas na montra. O estabelecimento dispunha de sapatos das melhores marcas internacionais. Como a qualidade excecional do calçado português é reconhecida no mundo inteiro, não me admiraria se alguma daquelas marcas tivesse mandado fabricar as suas coleções em Portugal. Acabei por comprar umas sapatilhas rasas, confortáveis, de um modelo desportivo e muito elegante, que combinava bem com a roupa que eu trouxera do Brasil.


4. vilmoda

 

Quando entrei na Rua do Souto, cortei à esquerda, em passo ligeiro. À medida que caminhava, ia apreciando as montras de ambos os lados da rua. Embora o sol estivesse brilhante nessa manhã, comecei a sentir um pouco de frio, o que me pareceu natural para quem acabara de trocar os trópicos pelo clima ameno do sul da Europa. Por isso, entrei na Vilmoda por impulso, decidida a comprar um agasalho. Depois de ter experimentado várias peças, comprei um casaco de malha de uma cor que combinava com as sapatilhas novas. Não foi fácil tomar uma decisão, porque havia muito por onde escolher. 

 

 


5. rosi desde 1961

 

Ainda na Rua do Souto parei em frente à montra da Rosi, onde um manequim exibia um coordenado masculino elegante. Lembrei-me o meu marido, que a essa hora talvez ainda estivesse a dormir em razão da diferença de fuso horário. Passou-me pela ideia comprar todo o coordenado e oferecer-lho, mas não queria carregar uns quantos sacos na mão, que atrapalhariam o meu passeio pela cidade. Assim, peguei no smartphone, entrei no portal de compras online I SHOP BRAGA, encomendei as peças do manequim e enderecei-as para a minha casa. Fiz a compra sem precisar de entrar na loja, o que me permitiu continuar com as mãos livres e proporcionar uma bela surpresa ao meu marido.

 


6. casa dos crivos

 

Encontrei a Casa dos Crivos depois de ter cortado à direita pela Rua de S. Marcos. Na fachada do edifício distribuem-se belíssimas gelosias, uma estrutura herdada da arquitetura árabe. Constituída por treliças de madeira capazes de vedar vãos de janelas, o objetivo das gelosias era o de proteger as mulheres de olhares masculinos alheios, pois evitava que quem estivesse atrás da janela fosse visto por quem se achasse do outro lado. Por essa razão, a palavra "gelosia" terá vindo do francês jalousies, ou do inglês jealous, significando "ciúmes". Descobri que este tipo de janelas era utilizada no século XVII em muitas casas de Braga para conceder aos habitantes da cidade o recolhimento exigido pelo conservadorismo religioso da época.

 


7. braga point

 

Na extremidade da Rua de S. Marcos encontrei uma loja de lembranças, a Braga Point. Gosto de comprar lembranças dos locais por onde passo, para poder reviver as viagens que a profissão ou o lazer me proporcionam. A loja dispunha de muitos objetos portugueses ou decorados com motivos de Portugal, como copos, leques, t-shirts, bonés, pratos decorativos, guarda-chuvas e sacos, entre outros, produzidos em diversos materiais. Comprei um íman para colocar no frigorífico (geladeira, como dizemos em português do Brasil) com um retrato do poeta português Fernando Pessoa acompanhado por um fragmento de texto da sua autoria que dizia assim: “A vida é o que fazemos dela. (…) O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.

 


8. CAFÉ SANTA CRUZ

 

Parei no Café Santa Cruz para beber um excelente café expresso português, bem diferente do que se bebe no Brasil. A esplanada permitia-me observar as igrejas de S. Marcos e de Santa Cruz. O edifício do Café Santa Cruz é revestido por azulejaria portuguesa, mas a passagem do tempo arrancou alguns azulejos em todas as fachadas do café. Por mero acaso, reparei que alguém tinha tapado uma das áreas descobertas com um pequeno grupo de azulejos que reproduzia o padrão original, mas pintado noutra cor, e que continha uma frase do escritor angolano Mia Couto: “A imagem é tanto mais bela quanto ela for auditiva, evocando sonoridades do momento”. O autor da obra assinava, muito a propósito, “preencher vazios”.

  

 


9. IGREJA DE SANTA CRUZ

 

Visitei a Igreja de Santa Cruz, construída no século XVII em estilo barroco maneirista. Fiquei impressionada com a notável talha dourada do órgão e dos púlpitos. Haviam-me contado no Café Santa Cruz que há uma lenda em torno da fachada da igreja que afirma existirem três galos em alto-relevo escondidos nos desenhos esculpidos na pedra. Por causa dos galos, dantes era habitual ver pessoas de nariz para o ar a olhar a fachada da igreja, porque a menina casadoira que os identificasse teria a boda garantida para breve. Pelos vistos, dois dos galos eram fáceis de encontrar, mas o terceiro parece que ninguém o conseguia descobrir.

 


10. CASA DOS COIMBRAS

 

No Largo S. João do Souto deparei com a Casa dos Coimbras, um palacete erguido no século XVI como residência para eclesiásticos. D. João de Coimbra, que o adquiriu alguns anos mais tarde, mandou edificar uma capela privada que se tornaria conhecida como a Capela dos Coimbras. O palacete, de estilo gótico e manuelino, é hoje uma extensão da galeria de arte Mário Sequeira. Nos jardins do edifício, mas apenas durante os meses quentes, funciona um bar que serve bebidas e snacks variados, ao som de música ambiente. É um ótimo espaço para descontrair, mesmo no coração da cidade.

 

 


11. MONUMENTO A FRANCISCO SANCHES

 

Francisco Sanches foi um ilustre médico e filósofo, batizado na Igreja de S. João do Souto, situada paredes meias com a Capela da Casa dos Coimbras. Estudou em Bordéus, que à época era um foco de renovação intelectual sob a influência do Renascimento italiano e do reformismo religioso. Depois prosseguiu os estudos em Itália. Regressado a França, exerceu a atividade médica no hospital de Toulouse, onde permaneceu e lecionou medicina até ao fim da vida. No campo da filosofia destaca-se a sua magnífica obra "Opera médica". Braga presta-lhe várias homenagens, sendo uma delas a admirável escultura de Salvador Barata Feyo, colocada em frente à igreja que o batizou.

 


12. CAXUXA

 

Segui pela Rua D. Afonso Henriques. No primeiro cruzamento encontrei a Caxuxa, uma loja de vestuário que me chamou a atenção pelo bom gosto e elegância que se exibia na montra e no espaço interior. Eu já tinha decidido que não compraria mais nenhuma peça de roupa, mas não consegui resistir a um bodie que estava exposto numa das prateleiras. Era muito belo, de formas longilíneas cor-de-laranja sobre fundo azul, num desenho sinuoso que sugeria o movimento do mar. Experimentei-o, vi que me caía muito bem e acabei por comprá-lo. Mais tarde, das vezes que o vestia em S. Paulo, fazia sempre sucesso no meu grupo de amizades. 

 

 


13. A FORMIGA

 

Antes de chegar ao fim do percurso que havia decidido fazer nesse dia, parei na loja A Formiga para saborear uma tosta de salmão fumado e uma cerveja artesanal portuguesa. O estabelecimento serve lanches e refeições ligeiras com produtos gourmet de qualidade. Nas paredes da loja exibia-se uma exposição de pintura de Rosa Vaz, de traços fortes e cores quentes que me transportaram para o mistério das paisagens africanas. No espaço de A Formiga organizam-se com frequência eventos culturais que contribuem para a difusão da artes e para a animação de Braga. Saí de lá com a alma cheia.

 

 


14. ESCULTURA DE DOM JOÃO PECULIAR

 

Dom João Peculiar, arcebispo de Braga, foi um dos protagonistas da fundação da nacionalidade portuguesa. Reza a lenda que teve a honra de coroar D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, de quem também foi conselheiro. O clérigo organizou o encontro entre o autoproclamado rei de Portugal e o monarca Afonso VII de Leão e Castela, do qual resultou o Tratado de Zamora, acontecimento que marcou a fundação de Portugal. Depois dessa reunião, deslocou-se catorze vezes a Roma para convencer o Papa a reconhecer a coroação de D. Afonso Henriques, o que só veio a suceder em 1175 após a eleição de um novo sumo pontífice. Dom João Peculiar está sepultado na Sé Primacial de Braga.

 


15. MUSEU DE ARQUEOLOGIA

 

Cheguei às portas do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, o segundo maior e mais importante museu de arqueologia de Portugal. O edifício do museu, moderno e construído de raiz, está em perfeita harmonia com o espaço envolvente. Durante as escavações para a sua edificação, foram encontrados vestígios de uma construção do século I, incluindo um belo mosaico romano que viria a integrar as futuras instalações. Visitei a exposição permanente que compreende um longo período cronológico e cultural que vai desde o Paleolítico até à Idade Média. A época da ocupação romana é, naturalmente, o tom dominante da exposição. Decididamente, eu estava na minha praia.

 


15. TERMAS ROMANAS DO ALTO DA CIVIDADE

 

Terminei o percurso nas Termas Romanas do Alto da Cividade, descobertas em 1977 por simples acaso, aquando da abertura de uma vala para colocação de esgotos que iriam servir a urbanização planeada para aquele lugar. Os meus familiares portugueses haviam-me dito, meio a brincar, meio a sério, que bastava abrir um buraco no solo para se descobrirem vestígios arqueológicos de Bracara Augusta, a antiga cidade romana que jaz debaixo do empedrado. As termas foram construídas no início do século II e inserem-se numa área arqueológica protegida. A diretora do espaço deu-me a honra de uma visita guiada. Perguntei-lhe, bem à moda do Brasil, “Qual é a sua graça?’” para que me dissesse como se chamava. Antes que a diretora me respondesse, não pude deixar de reparar no sorriso afetuoso que me endereçou e que guardou para si própria com carinho de patrícia. Depois demorei-me a observar as termas públicas e a imaginar que memórias guardariam aquelas pedras que outrora haviam servido banhos públicos aos cidadãos romanos de acordo com as regras prescritas pela medicina da época. 

 

Percurso mapa