Percursos

Da China ao Banco de Portugal de Braga

Vivo em Pequim com a minha mulher, Zhāng Kěxīn (张可欣), e os nossos dois filhos. Ela é enfermeira num dos hospitais da capital. Eu sou funcionário do Banco da China, trabalho numa agência situada a dois quarteirões de nossa casa. Ān Jìng (安婧), menina de olhos doces, é a mais nova da família, tem apenas oito anos; há pouco tempo confidenciou-nos que queria ser atriz de cinema. Ān Lín (安林), mais velho dois anos do que a irmã, gosta de brincar com aviões, naves espaciais e toda a sorte de aeronaves; afirma que um dia será astronauta.

 

Fomos visitar Braga durante as férias das crianças. Voámos de Pequim para Lisboa através de Macau, onde temos familiares a residir. Nessa viagem, decidimos descobrir Portugal por nossa conta sem a pressa que as excursões de grupo habitualmente imprimem. Ficámos duas noites em Lisboa, mas depois subimos para Norte de comboio. Parámos no Porto, deambulámos pelo centro histórico e pelas margens do Douro, mas seguimos nesse mesmo dia para Braga, cidade que havíamos decidido visitar por recomendação de amigos e conhecidos. Como havíamos chegado à noitinha, pernoitámos no Bom Jesus seguindo o conselho do taxista que nos apanhou na Estação de Caminhos-de-ferro.

 

Na manhã do dia seguinte visitámos o centro da cidade. Como Braga nos era até então desconhecida, começamos o percurso pelo Posto de Turismo. Depois fomos vagueando pelas ruas, cuja área pedonal, de larga extensão, me deixou sossegado em relação aos cuidados a ter com os meus filhos, prevenido como costumo estar em relação aos perigos do trânsito caótico de Pequim.

Ān Fēng (安峰) 

 


 

1. POSTO DE TURISMO 

 

No Posto de Turismo de Braga contaram-nos uma história sobre o relógio colocado no topo do edifício que não resisto a relatar. Segundo nos disseram, no primeiro quartel do século passado havia um relógio na Avenida Central, numa antiga instituição bancária, que teve que por ser retirado em virtude das obras de remodelação do edifício. A ausência do relógio causou grande consternação e revolta nos cidadãos, porque já todos se haviam já habituado a orientar as suas rotinas por aquele vetusto marcador de tempo, numa época em que ainda não havia telemóveis nem se suspeitava do advento da tecnologia digital. Como não se falava noutro assunto na cidade, um dia chegou às páginas do jornal local o eco da indignação dos bracarenses, gritado assim em letra de imprensa: “Queremos um relógio. Precisamos de um relógio”. E assim, para sossego da população, surgiu em 1937 o relógio que hoje se vê no Posto de Turismo, precisamente na data de inauguração do edifício.

 
 


2. canteiros de flores da avenida da liberdade 

 

Saímos do Posto de Turismo e detivemo-nos no topo da Avenida da Liberdade a contemplar a vintena de canteiros floridos que se estendia em ziguezague ao longo da alameda. Enquanto permanecemos no nosso posto de observação, não pudemos deixar de reparar na quantidade de visitantes e turistas que fotografavam aquele belo mosaico de amores-perfeitos. Lembrei-me do Desabrochar de Cem Flores, ideia tão cara à cultura e história chinesas no período anterior à Revolução Cultural: “Que flores de todos os tipos desabrochem…”, recordei.


3. palácio do raio

 

Atravessámos os canteiros floridos e cortámos à direita pela Rua do Raio. Ao fim da rua surgiu-nos o Palácio do Raio, obra do arquiteto André Soares, considerado um exemplar raro da fase mais exuberante da arquitetura barroca de Portugal. Tendo funcionado como uma instalação do Hospital de São Marcos até ao final do século XX, em 2015 o palácio sofreu obras de restauro profundas para albergar o Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga. Essa reabilitação permitiu acolher o núcleo museológico e o acervo documental da Misericórdia de Braga, instituição que tratou dos cuidados de saúde da população antes da criação do Serviço Nacional de Saúde português. Sugiro uma visita ao espólio do museu e gostaria de assinalar a beleza da fachada do palácio, de onde sobressai a exuberância da decoração, a riqueza da porta central e as onze janelas distribuídas pelos dois pisos da construção. A assimetria dos ornatos confere ao edifício uma dinâmica e um dramatismo peculiar que não passa despercebido a quem a observa.


4. são bentinho

 

Subimos a Rua de São Lázaro, passamos defronte da Igreja da Misericórdia e cortámos à esquerda pela Rua de São Bentinho. Na capela do mesmo nome observámos a devoção que os portugueses têm por este santo, tal foi o número de pessoas que vimos ajoelhadas a rezar ou a depositar oferendas. Um grupo de devotos passou por nós em excursão e pôs-se a venerar o santo em silêncio. São Bento, ou São Bentinho, é um santo milagreiro especialmente invocado por razões terapêuticas, para curar doenças da pele e males ruins. As ofertas que lhe fazem devem ser de cor branca, tal como a cor da pele em que as doenças se manifestam: ovos, açúcar, sal, farinha ou moedas brancas, por exemplo. Quando se pretende curar verrugas deve-se oferecer cravos, a flor do craveiro. A Capela de São Bentinho é barroca e neoclássica, datada de meados do século XVIII. No interior possui um painel representando São Bento, Nossa Senhora da Luz e São Bernardo.

  


4. FORTESTORE

 

Descemos a Rua do Souto atentos à diversidade da oferta comercial, observando os produtos expostos nas montras. Eu procurava um par de calças de ganga que me seduzisse; a minha mulher precisava de comprar uma bolsa. Havia na rua um sem-número de lojas com propostas tentadoras, mas a que nos chamou a atenção foi a ForteStore, na esquina da Rua do Souto com a Rua Francisco Sanches. Na loja comprámos mais artigos do que aqueles que tínhamos planeado comprar, mas ainda hoje não nos arrependemos das nossas escolhas. Excedemo-nos, confesso, porque a ForteStore dispunha de artigos de diversas marcas conceituadas aos quais não soubemos resistir. Por coincidência, noto agora que me encontro a escrever este texto com um dos pares de calças que comprei nessa loja; que não é de ganga.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  


7. PIRES JOALHEIROS

 

Um pouco mais à frente deparámo-nos com a ourivesaria e joalharia Pires Joalheiros, que me havia sido recomendada no hotel onde ficáramos hospedados. Fiz uma surpresa à minha mulher, comprando-lhe uma joia para assinalar o nosso aniversário de casamento. Ela ficou tão surpreendida como feliz. Os miúdos rejubilaram com a nossa alegria, e eu senti-me afortunado por ter uma família assim.

 

 
 
 
 
 
 

 

 

  

 


8. DELIGHT STORE

 

Quando entrámos na Delight Store, percebemos a limitação de espaço das nossas malas e da carga que se pode transportar de avião. Os produtos da loja são tão apetecíveis que nos deu a vontade de comprar tudo o que estava nas prateleiras. A Delight Store é uma loja gourmet feita de sabores portugueses. Os meus filhos não paravam de cobiçar os biscoitos, as compotas os chocolates. A minha mulher sentou-se a uma mesa com os miúdos, enquanto eu me detinha a observar os vinhos, a cerveja artesanal, os queijos, a charcutaria. Em boa hora, a responsável da loja que nos atendia, talvez porque tivesse percebido que queríamos comprar vários artigos mas não descortinávamos maneira de os transportar, falou-nos do I SHOP BRAGA, o que resolveu o nosso problema. Quando regressámos a Pequim foi um ver-se-te-avias. Nem ouso dizer quanto gastámos em compras.

 

   


9. TESOURO-MUSEU DA SÉ

Um pouco mais adiante, na Rua D. Paio Mendes, visitámos o Tesouro-Museu da Sé de Braga. Ficámos fascinados pela riqueza do seu espólio. A Sé de Braga, uma catedral magnífica que terá começado a ser construída no século XI, também merece uma visita. Num complexo que lhe é próximo, a Casa do Cabido, encontra-se o museu. Para nós, chineses, que conferimos muita importância à herança da nossa história e cultura, foi gratificante perceber que naquele espaço repousavam quinze séculos de arte sacra ligada à história da Igreja de Braga, com peças de ourivesaria, escultura, pintura, têxtil, mobiliário, cerâmica, medalhística e numismática

 


10. ÓTICA OLHOS DO CÁVADO

 

Quando descíamos a Rua Dom Frei Caetano Brandão, Zhāng Kěxīn fez-me um sinal para entrarmos na Óptica Olhos do Cávado. Eu seguia atrás dela e dos miúdos, entretido a tirar fotografias aos edifícios, cafés, ao trânsito, a pessoas com quem nos cruzávamos. Quis aproveitar a luz daquele fim de manhã, a quase ausência de sombras. Na loja disseram-nos que o número de clientes chineses ia aumentando de ano para ano. Acrescentaram que os nossos compatriotas chegavam em grupo, vindos de uma excursão pelo país ou diretamente do Porto, em cujo aeroporto haviam pousado. Passado algum tempo, animados pela simpatia do atendimento, começámos a experimentar vários pares de óculos em frente ao espelho, num clima divertido. Apesar de sermos reservados por natureza, o ambiente que entretanto se criou na loja quase parecia de festa. Como suspeitava, a minha mulher comprou um par de óculos de sol para juntar à sua coleção.

  


11. PILI CARRERA

 

Descemos pela Rua D. Diogo de Sousa em direção ao Arco da Porta Nova. Pelo caminho entrámos na Pili Carrera, uma loja de vestuário infantil. Zhāng Kěxīn, seduzida pelo que vira na montra, decidiu comprar roupa para os nossos filhos. Infelizmente, a Pili Carrera está vocacionada para uma faixa etária onde eles já não cabiam, pois nenhuma peça lhes servia. Triste por ver que não conseguiria comprar fosse o que fosse, a minha mulher acabou por trazer dois coordenados para recém-nascido, um deles em tons de rosa e o outro de cor azul-bebé. Num tom a meio caminho da brincadeira e da preocupação, perguntei-lhe se estava grávida. Zhāng Kěxīn riu-se a bom rir, mas disse-me para não me preocupar, porque as peças que comprara eram para oferecer a uma colega de trabalho que engravidara havia alguns meses.

 


12. MUNDO DO DESPORTO

 

Um pouco mais abaixo, na vizinhança do Arco da Porta Nova, o meu filho segurou-me pela mão, olhou-me como me quisesse falar de um assunto sério, e, sem dizer uma palavra, conduziu-me ao Mundo do Desporto, uma loja especializada em calçado desportivo. Depois apontou para um boné que estava pendurado no interior da loja, como a pedir-me que lho comprasse. Ainda hoje recordo o sorriso dele quando o pôs na cabeça. A minha mulher, mais habituada do que eu a percorrer os espaços comerciais e a detetar boas oportunidades de negócio, comprou ténis para todos, além de uma mochila para ela usar nas caminhadas que costuma fazer nas ruas do nosso bairro, em Pequim.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

13. AZULEJOS DO CONVENTO DO PÓPULO 

 

Os meus filhos saíram da loja Mundo do Desporto com os ténis calçados, dispostos a fazer uma longa caminhada. Mostrou-se difícil convencê-los a visitar o Convento do Pópulo, edifício onde hoje funcionam alguns serviços da Câmara Municipal, e onde temos de pedir entradas junto do “Balcão Único”. A minha intenção era a de ver e fotografar os painéis de azulejos do convento, cuja beleza me surpreendera quando os observara na Internet antes de termos viajado para Portugal. Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar à China, no século XVI, no mesmo século em que teve início a construção do convento. Nessa época, importaram estampas e tecidos com motivos chineses para decorar os azulejos que produziam. Os painéis do Convento do Pópulo são muito belos, mas nenhum tem motivos chineses. Com temática religiosa, identificam-se pela monocromia azul e destacam-se pelo seu contorno recortado.

 
 




14. ANA PAULA JEWELRY

 

Na praça do Município, local onde se ergue o edifício principal da Câmara, voltámos a entrar numa ourivesaria, a Ana Paula Jewelry. Disse a Zhāng Kěxīn que não tencionava oferecer-lhe mais nenhuma prenda, e até lhe perguntei se ela queria começar a colecionar ouro e joias como colecionava óculos. A minha mulher sorriu, mas não respondeu à ironia. Entrou simplesmente na loja com os meus filhos de mão dada. Um pouco mais tarde, enquanto eu aguardava sentado num banco de jardim, aproximaram-se todos de mim e ela mostrou-me duas pequenas pulseiras de prata que comprara para os miúdos, que depois abençoou com uma reza qualquer de que já não me recordo.

 

 


15. IGREJA DOS TERCEIROS

 

De regresso ao ponto de partida do nosso percurso, parámos na Igreja dos Terceiros, para contemplar a beleza das paredes interiores, do teto abobadado em pedra e dos altares em talha dourada. Os azulejos são da autoria de Nicolau de Freitas, membro de um movimento das oficinas produtoras de azulejo que ficou conhecido como Ciclo dos Mestres, em reação à importação em grande escala de azulejos holandeses. Entre o final do século XVII e 1720, as oficinas de azulejo contrataram pintores de cavalete para realizar painéis e outras obras artísticas sobre este suporte cerâmico tão caro à cultura e arte portuguesas. O templo começou a ser construído em 1690 pela Ordem Terceira de São Francisco com a contribuição das esmolas dos fiéis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


16. BANCO DE PORTUGAL

 

Como referi no início do percurso, sou funcionário de uma Delegação do Banco da China em Pequim. Quando viajo para o estrangeiro, tenho a curiosidade de observar as dependências bancárias que vou encontrando pelo caminho, principalmente a grandiosidade arquitetónica dos edifícios que se encontram no centro das cidades. A agência do Banco de Portugal de Braga, inaugurada em 1928, passou a ser, desde que a vi e fotografei de todos os ângulos possíveis, mais uma peça de coleção das memórias que guardo das minhas viagens. É um edifício imponente, tanto no exterior como no interior. Possui portas altas em ferro trabalhado, o átrio é revestido com painéis de mármore, as portas são de madeira de castanho e cristal, os balcões feitos de madeira mas com guarnições de bronze – um cuidado arquitetónico que impressiona pela riqueza e grandeza. Confesso-vos: apesar de gostar do edifício onde trabalho em Pequim, não me importaria que fosse igualzinho a este, ao da Agência de Braga do Banco de Portugal.

 
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Percurso mapa